10 de abril de 2015

O Bombardeiro Estratégico que (felizmente) Nunca Existiu

Hoje vou falar menos sobre aspectos técnicos do maquinário e vou me concentrar neste conceito: utilizar bem uma máquina é tão (ou mais) importante do que construir uma boa máquina.

Hoje eu vou falar sobre bombardeiros estratégicos e suas aplicações.

A população civil que se foooda! Tally-ho!

Quando escrevo sobre a engenharia aeronáutica da Segunda Guerra no Bigórnia, as vezes tenho a impressão de que estou falando pro vento. Não estou desmerecendo você, caro leitor, mas tenho a certeza do quão cabeçudo esse assunto pode ser. Pode-se argumentar de que existe uma legião de pessoas que, assim como eu, são fissuradas nesse assunto, porém não é pra elas que eu dirijo a palavra. Afinal ( sei por experiência própria) bastam 5 minutos de conversa com um desses aficionados para ficar provado que, em realidade, meu conhecimento é muito pouco. Eu não escrevo (apenas) para quem já manja do assunto. Eu escrevo para você, completamente leigo na aeronáutica do período, com o intuito de mostrar o quão interessante, bizarro e emocionante essas histórias podem ser.

Outra razão para eu não gostar muito de trocar idéia com esse pessoal aficionado é que, geralmente, eles são um bando de militarista (uso a palavra como ofensa) e eu me considero um pacifista convicto. Irônico, mas existe um motivo para esta minha paixão. Sou um designer, mas um designer que curte mais o projeto em si do que o resultado final. Gosto de saber como o ser humano consegue apresentar soluções para briefings absurdos em condições bizarras. E, amigos, não existe briefing mais escroto do que uma guerra.

Esse é o nível (imbecil) de quem curte história militar no Brasil. Me enche o saco.

Se você reclama do seu chefe atrás de você, espiando seu monitor enquanto trabalha, imagina um projetista trabalhando, cujos chefes são Hitler ou Stalin e seus capangas da Gestapo e NKVD. Se um erro pode te custar o emprego, um erro deles era caixão e vela (ou enxugar gelo na Sibéria: o próprio Nikolai Polikarpov foi parar num Gulag depois que alguns projetos deram errado). Para piorar, ainda existia a própria pressão de ver seu país (e conseqüentemente amigos e família) em perigo, fazendo com que os projetistas do período se sacrificassem tanto quanto os soldados do front, só que munidos com réguas de cálculo e pranchetas.

Há uma frase do Semyon Lavochkin (designer do La-5 e o La-7) resume bem esse cenário. Infelizmente, não posso copiar fidedignamente pois não achei em lugar nenhum da internet, mas basicamente ele falava isso:

"Tenho que trabalhar incessantemente e sempre dar o melhor de mim, pois sei que o inimigo possui projetistas capazes que estão fazendo o mesmo, e o resultado de nosso trabalho irá se defrontar nos céus da Rússia. E o meu projeto tem que vencer."

Prometeu um avião bom e não cumpriu? Parabéns, ganhou uma passagem de graça para a Sibéria!

Um pouco desabafo, um pouco introdução, um pouco informação, esses parágrafos acima serviram para mostrar um pouco o quanto uma idéia e um projeto são tão poderosos quanto exércitos inteiros. E projetos se aplicam não só na construção de equipamentos, mas em como utilizá-los também. É emblemática a imagem de imensas Fortalezas Voadoras (B-17) americanas sobre os céus da Alemanha, em altíssimas altitudes, despejando morte sobre a população civil (que sempre se fode...). Os Ingleses praticaram essa ideia com seus Lancaster. Os russos, um caso a parte, também desenvolveram e utilizaram seus Pe-8 (em menor grau). Até os italianos (pasmem!) flertaram com a ideia de bombardeio estratégico de alta altitude. Os nazistas, não. E nesse texto, vou tentar explicar rapidamente o meu ponto de vista sobre isso não ter ocorrido (graças ao bom deus).

O bombardeio estratégico é uma tática que visa minar a capacidade do inimigo de fazer guerra ao invés de destruir suas posições militares. De um modo geral, destruir uma fábrica de tanques é mais eficaz que destruir um tanque, contudo, é um erro imaginar que o bombardeio estratégico é oposto ao bombardeio tático. Ambas táticas, idealmente, devem ser utilizadas em conjunto. O problema é que, uma coisa é jogar uma bomba mergulhando sobre o alvo quase perpendicularmente a uma altura de mil a 500 metros. Outra, completamente diferente, envolve jogar uma bomba a 6 mil metros de altura com o avião voando horizontalmente (e pior: acertar o alvo). Esse era problema que, como veremos, residia no maquinário.

Para entender esse por que, temos que dar uma olhada nos aviões pré- Segunda Guerra. Na Primeira Guerra surgiram os primeiros bombardeiros de fato, isto é, aviões projetados para o fim exclusivo de soltar bombas na cabeça do inimigo (e não um avião qualquer onde o piloto arremessava as bombas com as mãos. Sério, isso rolava). O grande problema de acertar o alvo nesse processo é que a bomba deixa o avião com a velocidade do mesmo, percorrendo um grande caminho horizontal até atingir o chão.

Vamos embarcar na Nave da Imaginação do Carl Sagan e imagine que você é um piloto da primeira guerra com a difícil missão de acertar algumas bombas nas trincheiras inimigas.

Haja coragem!

A não ser que você quisesse atingir um alvo imenso (imenso tipo uma cidade), acertar o inimigo era uma questão de sorte. Quanto mais baixo você voasse, maiores suas chances de acertar, claro, mas mais fácil ficava para as baterias anti-aéreas te detonarem. Voar alto demais faria a bomba percorrer um caminho maior até o solo, acabando com sua precisão. Para piorar você teria que voar em linha reta a uma velocidade constante, virando um alvo fácil pra qualquer coisa que atire (lembrando que numa guerra quase tudo atira). As baixas na aviação militar de bombardeiro no período eram imensas e os ganhos eram poucos. Como exemplo, vamos ver a Batalha de Loos. Tudo que a Royal Flying Corps inglesa tinha que fazer era bombardear o arame farpado para as tropas avançarem. Como visto acima, não era uma coisa fácil de se fazer, erraram a mira feio e o arame ficou lá. O resultado foi o padrão da Primeira Guerra: um monte gente morreu e ninguém avançou um centímetro sequer.

(só pra constar meu povo: esse exemplo pode estar errado, pois eu vi ele no National Air and Space Museum lá em Washington e tô confiando na memória. Se eu errei, avisem aí.)

Claro que no período houveram tentativas de atingir o coração industrial do inimigo e foi na Primeira Guerra também que surgiu o bombardeio estratégico. Num primeiro momento foram utilizados para este fim os zepelins (em minha opinião os veículos aéreos mais sensacionais que o homem fez. Um dia faço um post sobre esses leviatãs), que possuíam o alcance necessário para longas viagens e a capacidade de carregar muitas bombas, mas eram alvos fáceis e lentos. Aviões para este propósito podiam ser mais rápidos, mas carregavam menos bombas e a engenharia da época não era capaz de produzir motores confiáveis o bastante para longas jornadas. Em suma, o papel do bombardeio estratégico na Primeira Guerra foi taticamente irrelevante, servindo apenas para aterrorizar a população civil e atiçar o imaginário do povo.

Resultado padrão de uma operação de bombardeio na Primeira Guerra.

Com a experiência sangrenta da Primeira Guerra, vários teorizaram (com bastante razão) que esse negócio de soltar bomba na horizontal com uns trambolhos gigantescos era uma furada. Surgiram então na década de 20 duas doutrinas militares (que não eram mutuamente exclusivas) que envolviam um approach diferente e aviões menores (mono e bimotores). A primeira foi o bombardeio de mergulho, que como o nome sugere, envolve mergulhar sobre o alvo e soltar a bomba quase perpendicularmente sobre o alvo, aumentando significativamente a precisão. O perigo de se estar a baixa altitude era compensado pela alta velocidade adquirida durante a descida e pela manobrabilidade do avião. Os americanos foram os primeiros a testar com sucesso esta doutrina, que foi rapidamente adotada pelo mundo afora e encontrou seu ápice no JU-87 Stuka alemão.

A outra doutrina envolvia majoritariamente aviões bimotores, que lançariam suas bombas horizontal ou verticalmente e depois fugiriam da zona de conflito tão rápido que os caças inimigos simplesmente não conseguiriam acompanhá-lo. Esta doutrina por algum motivo foi muito bem aceita pelos alemães, que a batizaram de Schnellbomber (bombardeiro rápido). Estas aeronaves carregavam poucos (em alguns casos nenhum) armamento defensivo, a fim de deixar o avião mais leve e mais rápido. Ambas as doutrinas priorizavam a precisão e a capacidade de sobrevivência do avião relegando a capacidade de carregar grandes cargas a segundo plano.

Diagrama ilustrando como um Stuka realizava um bombardeio de mergulho.

O progresso técnico, no entanto, seguiu seu rumo inexorável. Motores melhores e mais potentes agora elevavam a velocidade e o teto operacional das aeronaves para alturas imensas e uma tecnologia rudimentar que nascera na Primeira Guerra para auxiliar a mira dos bombardeiros se tornava cada vez mais refinada: o bombsight (foi mal pessoal, nem sei como traduzir esse termo). Na década de 20 foram criados os primeiros bombsights tacométricos. Só deus sabe o que "tacométrico" quer dizer, mas o importante é que esse equipamento calculava a trajetória parabólica da bomba com uma precisão assombrosa para a época. Resolvido a questão da precisão das bombas, alguns visionários perceberam aí a solução que faltava para resolver o problema dos bombardeiros estratégicos: aviões maiores (bi e quadrimotores) voando alto, defendidos por várias metralhadoras e por uma construção robusta agora eram possíveis graças aos motores mais potentes e novos materiais e métodos de construção.

Como eu disse no início do post, quase todas as nações beligerantes da época desenvolveram tanto bombardeiros táticos quanto bombardeiros pesados estratégico, menos a Alemanha (que entrou na ciranda do bombardeiro estratégico tarde demais na guerra para surtir qualquer efeito). A isso se deve a alguns motivos e vamos ver alguns deles.


O Tratado de Versalhes


Como vocês sabem (ou pelo menos deveriam saber!), o Tratado de Versalhes fodeu a Alemanha (desculpem a palavra, mas não existe termo mais apropriado). O que era pra ser uma imposição para evitar uma nova guerra contra os tedescos, acabou gerando inflação, pobreza, instabilidade política e caos, adubos perfeitos para ascensão do Nacional Socialismo e sua mentalidade militarista (retardada). Também foi um tiro no pé no viés técnico: impossibilitados de desenvolver aviação militar, os alemães improvisaram. Desenvolveram aviões comerciais facilmente adaptáveis para o papel militar, utilizaram carros de corrida para desenvolver motores, cuja real finalidade era de impulsionar aviões de combate, e deram saltos gigantescos na tecnologia de motores a jato e foguetes, ignorados pelo Tratado de Versalhes. É inegável a perspicácia e inventividade alemã ao driblar o Tratado, mas estas finalidades secundárias eram altamente secretas. Tão secretas que um extravagante avião de quatro motores, de alta performance e capacidade de carga, chamaria demais a atenção. Isso se deve ao fato de que, salvo exceções, a aviação comercial da época era composta por aviões menores, dada a pouca quantidade de passageiros. Um avião quadrimotor, capaz de erguer muitas toneladas, de altíssimo teto operacional, robusto e relativamente veloz, mesmo com a desculpa de carregar passageiros, era um indício fortíssimo de que naquele angu tinha mosquito.

Já que o Tratado de Versalhes não falava nada de foguetes, os alemães criaram o primeiro míssil balístico de longo alcance, o V-2. Sagaz mas não muito eficaz. (Na foto: americanos testando um V-2 capturado e modificado)


A insistência no Schnellbomber


Pelo motivo acima, a Alemanha optou por aviões menores e menos chamativos. Eles também eram ideais para o conceito de bombardeiro rápido, cuja principal defesa era a velocidade. Este conceito, embora abraçado com muito carinho pelos alemães, jamais foi alcançado por eles. Ainda na Guerra Civil Espanhola (o grande campo de Testes da Luftwaffe), bombardeiros rápidos sem nenhum tipo de defesa sofreram baixas terríveis, provando que eles não eram rápidos o suficiente. Foram adicionadas metralhadoras para defesa, mas sempre em pouca quantidade, para não sacrificar a velocidade. o HE-111, por exemplo, possuía duas. Já o B-25, bombardeiro médio americano, possuía seis, dispostas em quatro pontos diferentes do avião. A Alemanha insistiu na hipótese do Schnellbomber até o final da guerra mas, ironicamente, quem conseguiu projetar um avião assim foram os ingleses e seu DeHavilland Mosquito (que era absurdamente rápido).

Inicialmente um avião de passageiros, o HE 111 podia ser facilmente convertido em uma arma de guerra. Fracamente defendido, era bem rápido, mas não o suficiente.


Problemas na produção


Por uma série de questões (de ordem prática, defensiva, cultural e por aí vai), as fábricas alemãs eram segmentadas em pequenas manufaturas. Um local fazia os motores, outro a fuselagem da cauda, outro as asas e assim sucessivamente até juntar tudo e se obter um avião. Não raro, esse quebra cabeça era montado nos próprios aeroportos. Se por um lado este processo era uma ótima defesa contra bombardeios inimigos (afinal, o alvo era substancialmente menor e fábricas menores são mais fáceis de reconstruir), por outro dificultava a produção de um maquinário de dimensões maiores. Outro problema no quesito "produção" era a escassez de material, principalmente de motores. O que é melhor? Um bombardeiro pesado de quatro motores ou quatro bombardeiros de mergulho Stuka? Os Alemães achavam melhor quatro Stukas.

O JU-87 Stuka podia ser lento e obsoleto, mas era barato, resistente e preciso.


O lado ruim da Blitzkrieg


É óbvio que o lado ruim da blitzkrieg é ser alvo dela, mas não é disso que eu vou falar.

A Blitzkrieg, ou guerra relâmpago foi de fato uma cartada de mestre da Alemanha Nazista. Avançando rápido em ataques surpresa, a Wermacht (exército Alemão) foi capaz de conquistar quase toda a Europa em pouco tempo. Os ataques eram tão rápidos, que muitas vezes os inimigos se rendiam sem ter disparado uma única bala. Só que para esta estratégia funcionar, era necessário um forte apoio da Luftwaffe, com bombardeios táticos de muita precisão e força. Com o alto escalão totalmente dedicado a doutrina da guerra relâmpago, o bombardeiro estratégico ficou relegado a segundo plano, todos os esforços sendo dedicados a um maquinário mais leve, de função tática para apoiar a infantaria e divisões mecanizadas. Para piorar, havia uma insistência burra de que todo bombardeiro da Luftwaffe fosse capaz de realizar bombardeios de mergulho. Até nos poucos projetos de bombardeiros pesados (como no caso do HE 177) essa imposição era feita para os projetistas, o que acabava por tornar o projeto lento, custoso e quase sempre inútil.

O HE-177 foi o mais próximo que a Alemanha chegou de um bombardeiro estratégico pesado,  mas a insistência em um papel de bombardeiro de mergulho, problemas no arrefecimento dos motores e poucos números construídos tornaram seu papel irrelevante na guerra.


A morte prematura de Walther Wever


Quando Walther Wever se tornou Comandante do Ministério da Aviação (Reichsluftfahrtministerium) em 1933, ele trouxe consigo idéias do italiano Giulio Douhet, um teórico militar precursor da doutrina do bombardeio estratégico. Wever era um defensor ferrenho da tática de debilitar a indústria inimiga e sua capacidade de produção e era um homem de iniciativa e força de vontade. Sob seu comando, a Luftwaffe começou  contemplar a ideia do projeto do Bombardeiro Ural (UralBomber), capaz de carregar grandes quantidades de bombas até as mais longínquas cidades-fábrica da União Soviética, o inimigo natural da Alemanha Nazista. Durante o pouco tempo em que permaneceu no cargo, licitações foram abertas para desenvolver um avião que atendesse a todas as expectativas de carga e autonomia, comprando brigas políticas e vencendo muitos figurões das Luftwaffe que apostavam no bombardeio tático. Sua morte prematura em um acidente aéreo em 1936 acabou com seus planos, já que seus sucessores se mostraram muito mais passivos e o programa do Bombardeiro Ural foi para a vala.

Walther Wever numa foto que parece um mugshot.

Para se ter uma ideia do quão importante era esse programa, vou abrir um parágrafo para explicação:

É inegável: quem realmente venceu a guerra foram os Russos. Os aliados abreviaram a carnificina, mas mesmo que o combate fosse apenas Alemanha vs. Rússia, eu apostaria todas as minha ficha nos soviéticos  e Walther Wever também pensava assim. Para virar a maré a favor dos alemães, Walther sabia que a monstruosa capacidade industrial russa devia ser inutilizada, e ao contrário das pequenas (porém numerosas) fabriquetas alemãs, os Russos se industrializaram rápido com poucas (porém gigantescas) cidades-fábricas, alvos fáceis para bombardeiros pesados. Quando a Alemanha invadiu a Rússia, Stalin teve tempo (muito pouco, mas o suficiente) para mover todas as fábricas que existiam na Rússia ocidental para leste, a salvo das bombas alemãs (sim amigos, estou falando em mover fábricas inteiras!). A leste dos montes Urais existia até uma cidade apelidada de Tankgrado, uma cidade inteira dedicada a produção de tanques. Se os Nazistas possuíssem aviões capazes de viagens longas, a produção soviética seria afetada muito mais do que os aliados afetaram a produção dispersa alemã, ainda mais se levarmos em consideração o fato de que, nos primeiros meses da Grande Guerra Patriótica, a força aérea russa teve baixas que giravam em torno de 80%. Sem caças para abater estes bombardeiros nazistas, bombardear as imensas fábricas russas seria um passeio no parque.

Portanto, amiguinho, quando você se sentir aliviado por que os nazi-fascistas tomaram um pau danado, agradeça ao mecânico que esqueceu de checar corretamente o avião do Senhor Walther Wever. Se esse cara não tivesse morrido antes da guerra, a história poderia ter sido bem diferente...


No próximo post: um giro pelos grandes bombardeiros estratégicos da Segunda Guerra! Lancasters, Fortalezas Voadoras, Pe-8 e seus motores a diesel (!!!) e até um ótimo exemplar italiano! Não perca!

Fontes

1, 2, memória e wikipédia (não me julguem!)

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