15 de março de 2015

Os buggies esportivos da obscura Tecnofibra



A história dos buggies no Brasil está intrinsecamente ligada à dos esportivos fora-de-série, tanto cronologicamente quanto ao fato de que ambas as categorias compartilhavam um mesmo ideal: explorar nichos de mercado específicos que estavam além do foco das grandes montadoras. Mas o que acontece quando alguém decide fundir as características de um buggy e de um esportivo em um mesmo veículo? O primeiro a introduzir essa ideia no Brasil foi Milton Adamo com o seu GT Adamo, apesar de alguns anos depois passar a produzir esportivos seguindo a maneira tradicional. Logo em seguida, foi a vez da Tecnofibra, um fabricante muito mais obscuro, mas que se manteve na ativa por um bom tempo e obteve um sucesso razoável.

Assim como tantos outros fabricantes de buggies que se proliferaram na época ─ cuja maioria também desapareceu em uma velocidade incrível ─, a Tecnofibra era sediada no Rio de Janeiro. Para ser mais preciso, a fábrica ficava originalmente na rua Onfaléia, 10, no Jacarézinho, sendo posteriormente relocada para a rua Viúva Cláudio, 270, no Jacaré. Foi fundada no início da década de 70 para produzir um modelo idealizado por Fernando Pinheiro dos Santos, cujo primeiro protótipo havia sido construído com a ajuda do seu irmão Ronaldo. Sendo fruto de experiências anteriores envolvendo construção de automóveis e com um exemplo peculiar na família de dedicação ao ramo, seria perfeitamente natural seguir um caminho como esse.


Fernando Pinheiro dos Santos com um Tecnofibra Bravo nos anos 80, no Rio de Janeiro.


Entusiasta desde criança, Fernando compartilhava a mesma paixão por automóveis com o pai, que se dedicava a nada mais e nada menos do que importar veículos até mais ou menos a metade da década de 50, quando esse tipo de atividade passou a ser duramente restringido no Brasil em função do nascimento da indústria automobilística local. Em 1958, ele então fundou a Panauto S.A. para produzir a Vespa sob licença da Piaggio italiana e em uma época em que as motonetas eram moda no mundo inteiro. Começando com o modelo M3, equivalente ao modelo VB1T na Itália, a Panauto o substituiu pelo M4 (com peças da transmissão do modelo VBB1T italiano), em 1960, e passou a produzir o Vespacar, um simpático furgão triciclo.

Com a concorrência arrebatadora da Lambretta, os modelos Vespa perderam mercado e deixaram de ser produzidos no Brasil em 1964. Entre outras atividades, o pai de Fernando também fundara a primeira fábrica de karts do Rio de Janeiro.



As experiências anteriores com o 'GT-Pirao'



Ronaldo e Fernando exibindo as "asas-de-gaivota" do GT-Pirao.


Em meados de 1965, Fernando materizara com a ajuda do seu irmão Ronaldo, a sua primeira criação: um minúsculo carro esportivo com excêntricas portas do tipo "asa-de-gaivota", talvez como uma forma de evitar tanto contorcionismo para acessar o interior, uma vez que a altura do veículo era de somente 82 centímetros. Batizado de 'GT-Pirao' (o nome é uma espécie de corruptela de 'pirado'), possuía um motor bicilíndrico e transmissão com quatro marchas e corrente, ambos provenientes de uma motocicleta Norton 500.

A suspensão, apesar de ter sido aproveitada de um Jeep-Willys, foi adaptada às dimensões do carrinho e eliminando a tendência de sair de traseira. Os freios a tambor nas quatro rodas, por outro lado, eram os mesmos do Gordini. Com carroceria de fibra-de-vidro, o peso total era estimado em 300 kg, o suficiente para atingir os 140 km/h de velocidade máxima ─ uma marca estupenda para um carro que parecia ter saído de um autorama.

Fernando, por sua vez, apesar de não ter condições de produzir o GT-Pirao em série, tomou esse aprendizado como uma forma de estímulo para planos futuros. Algum tempo depois, com a oportunidade de poder viajar pela Europa e Estados Unidos, Fernando aproveitou para fazer diversos cursos de especialização na área automotiva, podendo assim ampliar seu espectro de conhecimento no que se referia a mecânica e confecção de carrocerias em fibra-de-vidro. Agora muito mais capacitado, Fernando retornara ao Brasil e em 1970 ele começou a esboçar ideias para um novo veículo que combinasse elementos de um buggy e de um esportivo. Foi justamente naquela época que a febre californiana dos buggies finalmente atingia o Brasil, marcada pelo lançamento do Glaspac ─ licenciado diretamente de Bruce F. Meyers, o pai dos buggies ─, seguido de uma infinidade de outros modelos.



Enfim, surge o Play-Bug



De frente, o impacto da frente em formato de cunha.


Em um mercado essencialmente movido por um fator sazonal, ou seja, a moda, era visível a sua saturação a curto prazo e foi exatamente o que aconteceu com o mercado de buggies no Brasil após a sua primeira febre no início da década de 70. Com a proibição das importações, eles voltaram com força total no anos 80 e novos fabricantes se proliferaram novamente em uma quantidade provavelmente equiparável à das transformadoras de utilitárias ─ estas sim podiam ser encontradas, assim por dizer, "em qualquer esquina". No entanto, o que fazer para tentar encontrar algum espaço em um mercado que se saturou precocemente? Talvez criar um modelo que mesclasse elementos e que pudesse até mesmo ser confundido com um esportivo. Mesmo que não tivesse sido a intenção, foi exatamente o que Fernando fez.

Assim nasceu o Play-Bug, o primeiro produto da então recém-fundada Tecnofibra Indústria e Comércio de Plásticos Ltda., trazendo um visual sem aquele apelo de utilitário ou aventureiro que era de praxe na grande maioria dos buggies, certamente o seu maior diferencial. Linhas orgânicas e aerodinâmicas, perfil baixíssimo em relação aos seus concorrentes, ausência de santantônio, frente em formato de cunha com para-choque, faróis embutidos e uma lâmina defletora para melhorar a aderência e amplas caixas de roda em formato semi-elipses compunham o visual simples porém avantajado do Play-Bug.

O primeiro protótipo foi inteiramente construído à mão por Fernando ─ novamente com a ajuda do seu irmão Ronaldo ─ no fundo do quintal de sua casa, ao mesmo tempo em que buscava mão-de-obra e maquinário para as instalações da fábrica. Ao que se consta, a produção foi efetivamente iniciada no fim do segundo semestre de 1972.


Visual avantajado e chamativo, mas ao mesmo tempo extremamente simples.


O Play-Bug era inicialmente oferecido de duas formas: somente o conjunto da carroceria para ser finalizado e complementado com a plataforma mecânica pelo próprio comprador, ou seja, como kit, custando 7.000 cruzeiros; ou o carro completo de fábrica com mecânica de um Fusca zero-quilômetro, custando 16.000 cruzeiros. Inicialmente previa-se pelo menos produzir cinco kits e um carro completo por semana.

O interior do carro era inteiramente pintado em preto fosco provido de bancos anatômicos individuais em forma de concha, estes com encostos e assentos respectivamente um tanto baixos e estreitos demais. Atrás havia um vão estofado em courvin que embora não acomodasse outros passageiros, ao menos servia para bagagens de pequeno porte. No interior, o painel tinha o formato de duas elipses alinhadas e o quadro de instrumentos, posicionado no centro, contava apenas com velocímetro, indicador do nível de combustível e manômetro de óleo. Para cobrir a carroceria em dias chuvosos, a capota de lona ao menos servia como "quebra-galho", podendo ser montada rapidamente por apenas uma pessoa, porém por ser baixa demais, o acesso e a acomodação no interior ficavam significativamente comprometidos.

Um dos destaques em relação aos outros buggies era a ausência de vibrações que ressonavam sobre o veículo como um todo ─ problema bastante comum em outros modelos ─, por conta da adição de suportes entre o chassi e a carroceria. O motor também era protegido por divisões laterais que dispersavam toda a água e areia levantadas pelas rodas. O peso da carroceria com acabamento completo, incluindo bancos, painel e para-brisa, ficava em aproximadamente apenas 80 kg. Com o chassi e mecânica, o peso total era de 500 kg, número também excepcional.


Um dos primeiros anúncios do Play-Bug.


A revista Quatro Rodas publicou suas impressões ao dirigir um protótipo do Play-Bug (o mesmo das fotos acima) em sua edição de junho de 1972, número 143. O carro em questão estava equipado com o motor Volkswagen refrigerado a ar de 1,3 litro e 46 cavalos de potência, que muito embora tivesse uma velocidade final de apenas aproximadamente 110 km/h, marca similar ao do Fusca equipado com o mesmo motor, o Play-Bug tinha uma capacidade de arrancada muito mais forte proporcionada pelos enormes pneus ─ como convém a todo buggy ─ e baixíssimo peso. A estabilidade foi extremamente elogiada, sendo comparada à de um kart, da mesma forma que a posição de dirigir e o modo de condução que o carro exigia.

Em situações extremas, como curvas muito fechadas em altas velocidades, revelava-se uma tendência em sair de traseira que exigia uma rápida correção às custas de uma direção pesada. De qualquer forma, o comportamento dinâmico do carro era basicamente neutro e pouquíssimas eram as chances de capotamento em caso de perda da direção, motivos pelos quais a fábrica dispensava o uso de santantônio, algo criticado pela revista. Entre outros detalhes, a preocupação em relação ao visual do modelo e ao acabamento renderam comentários extremamente favoráveis.



Tecno M-73: ainda mais esportivo





Poucos meses após o lançamento do Play-Bug e algumas dezenas de unidades vendidas, a Tecnofibra apresentara uma versão aperfeiçoada, mais bem acabada e ainda mais agressiva batizada de Tecno M-73. Enquanto o significado do nome "M-73" permanece um mistério para a maioria, o novo modelo de pretensões mais esportivas tinha como objetivo cativar ainda mais o público jovem despreocupado da praticidade de um sedã comum. A mudança mais drástica em relação ao Play-Bug foi a adição de portas, algo dificilmente encontrado em qualquer buggy.

Outras alterações no visual incluíam: a adoção de um vinco mais orgânico, estreito e comprido (em 10 cm) sobre o capô; quatro faróis simetricamente dispostos em dois habitáculos trapezoidais cobertos em acrílico (ao invés de um único retangular com apenas dois faróis, estes ainda oriundos da Variant); subseção das laterais agora reta e não mais côncava; para-brisa (feito com o vidro traseiro do VW "Zé-do-Caixão") com moldura em fibra-de-vidro e de inclinação; defletores nos para-lamas dianteiros; e traseira esticada verticalmente com a adição de um defletor, cobrindo uma parte maior do motor, além da presença agora de uma tampa para o motor e da troca das lanternas da Variant pelas dos caminhões Mercedes-Benz.


Por pouco, um legítimo carro esportivo.


O interior em preto fosco viria de série com os mesmos instrumentos do Fusca 1500, console central, nova alavanca de câmbio de 20 centímetros de comprimento, um pequeno porta-objetos. Para complementar o quadro de instrumentos, conta-giros, manômetro e termômetro de óleo e amperímetro da Smith's estavam disponíveis como opcionais. As portas incluíam um extenso porta-objetos na própria estrutura da fibra-de-vidro ─ algo banal nos carros atuais, mas um luxo difícil de ser encontrado naquela época. Por outro lado, elas não pareciam ser tão práticas quanto pretendiam, pois as mesmas eram um tanto espessas, dificultando um pouco o acesso ao interior.

Em compensação, a acomodação no interior e a posição de dirigir eram bem melhores do que no Play-Bug, apesar de exigir um pouco de esforço do motorista para acessar os comandos de luzes e limpadores. Os pedais, embora não tivessem ajuste mecânico, poderiam ser posicionados na própria fábrica de acordo com a estatura do comprador.


A traseira levantada era o indicador do tipo de carro que o Tecno M-73 se tratava.


Um novo jogo de rodas da Mangels com aro de 13" também era acrescentado ao pacote, com talas de 7,5" na frente e 8,5" atrás. Além de terem caído visualmente bem ao modelo, essas rodas possuíam defletores para reduzir o peso total e eram deformáveis para que o conjunto motriz fosse preservado no caso de uma batida. Estavam incluídos pneus Maggior Selvaggio, projetados exclusivamente para o modelo por uma empresa paulista com vasta experiência em buggies.

Melhoras no desempenho eram consequência da diminuição do peso da carroceria para apenas 45 kg, quase metade em relação ao Play-Bug, e motor Volkswagen de 1,6 litro refrigerado a ar com modificações como a inclusão de comando de válvulas e carburador duplo da Slipo (este último, uma cópia do Weber 40/44, porém sem o mecanismo de regulagem sem fixação) e de um diferencial mais longo. A força na aceleração e nas retomadas causava a impressão de que o carro tinha uma mecânica mais forte do que possuía de fato, fora o baixo peso que permitia com que o motor pudesse trabalhar às 6.000 rpm, ainda que provocasse o desgaste prematuro de diversas peças mantidas do motor original. A velocidade máxima ficava em torno dos 150 km/h.


Possivelmente o segundo protótipo do Tecno M-73 equipado com a capota rígida.


Se vendido em forma de kit, o Tecno M-73 sairia por 9.250 cruzeiros, enquanto que o carro completo de fábrica com mecânica revitalizada sairia por 19.000 cruzeiros, incluindo uma garantia de 10.000 quilômetros. O motor de 1,6 litro com preparação e os instrumentos da Smith's acresceriam o preço final em respectivamente 2.500 e 450 cruzeiros. De qualquer forma, o Tecno M-73 não chegou a ser produzido em série, tendo se resumido a provavelmente apenas dois protótipos construídos.



Bravo e os modelos de competição



Bravo: herdeiro dos aperfeiçoamentos do Tecno M-73.


Incorporando algumas das melhorias técnicas e soluções estéticas do Tecno M-73, surgia então o Bravo, de aparência mais comportada, sem portas igualmente ao Play-Bug e trazendo como opção uma capota rígida de fibra-de-vidro fixada na carroceria apenas com quatro parafusos e com subseções que podiam ser removidas, da mesma forma que em um targa, ainda que não houvessem janelas. Para facilitar o acesso ao interior com a capota inteiramente montada, as subseções podiam se abrir para cima.

O lançamento do Bravo se deu em comemoração à marca de 100 carros produzidos pela Tecnofibra e à capacidade da empresa em atender pedidos em cerca de 20 dias, um prazo extremamente curto para um modelo de produção de artesanal, porém mantendo um bom nível de qualidade de construção e de acabamento.


Com e sem a capota rígida.


De qualquer forma, o Bravo aparentemente não foi testado por nenhuma revista especializada da época, tendo sido provavelmente divulgado apenas através de pequenas notas. Consequentemente, tornou-se o modelo menos conhecido da Tecnofibra, muito embora há chances de ter sido o mais produzido. Com o passar do tempo, a própria empresa mudou sua razão social e seu endereço; passou se chamar Fibrafort Plásticos Ltda. (não confundir com o fabricante de lanchas) e se mudou para a Rua Dr. Odílon Benévolo, 232, no Benfica, relativamente próximo ao endereço anterior.

Mesmo sem alterações significantes ou modelos novos ao longo dos anos, a produção durou até meados da década de 80 e se totalizou em 400 unidades construídas. Como não houve mais novidades e nem mesmo publicidade, o que era fundamental principalmente para os fabricantes menores, a empresa caiu no ostracismo ─ pelo menos para a maioria.


Carrocerias sem acabamento no galpão da fábrica.


Um Bravo e um Play-Bug, respectivamente nas décadas de 80 (foto superior) e 70.


Pouco após o lançamento do Bravo, a Tecnofibra anunciou versões de competições dos modelos, denominados de Tecno Bravo e Tecno Play-Bug, que seriam disponibilizadas para pilotos que disputavam a Divisão 4 da Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA), além ter também todo o apoio do fabricante. Informações técnicas são desconhecidas, mas é bem possível que o motor deveria incluir uma preparação especial. No visual, o carro contava com um para-brisa rebaixado, santantônio (renegado nos modelos de série...), retrovisor elevado e lanternas do Fusca posicionadas na vertical próximas ao espaço da placa.


Tecno Play-Bug: preparado para competições.


Ao que tudo indica, as versões Tecno não chegaram a ser produzidas e nem às pistas. Uma grande pena, pois teriam sido os únicos buggies da época a disputarem campeonatos em autódromos e quem até sabe até inspirariam a criação de versões ainda mais velozes. A versatilidade dos modelos até que foi bem explorada dentro das possibilidades que surgiram na época, mas a empresa preferiu se manter concentrada no mercado de buggies e de abdicou de outras novidades até fechar as portas.




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8 comentários:

  1. David muito obrigado pela matéria, sou filho do Fernando e hj estou restaurando um Bravo, quando estiver pronto mostrarei as fotos
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    1. Muito legal...por acaso fiz a aquisição de um veículo, que acabei por comprar de um amigo, fui pesquisar a fundo pois fiquei fascinado pelo mesmo, e descobrindo está história fascinante....e posso dizer que também sou proprietário de um bravo.

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  2. David muito obrigado pela matéria, sou filho do Fernando e hj estou restaurando um Bravo, quando estiver pronto mostrarei as fotos
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    1. Rodrigo,

      gostaria de falar com você sobre bravo, play-bug e pirao. jrnasser@gmail.com

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  3. Muito legal essa matéria foi difícil de achar mais achei muito bom

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  4. Muito legal a matéria.... possuo um exemplar do bravo. Sou apaixonado no meu

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  5. Adquiri um Play recentemente, vou iniciar a restauração. vamos nos unir no whatssap, deve ter poucos sobreviventes hoje emm dia. (21) 96720-7772

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