25 de maio de 2015

Crítica: 24/7 - capitalismo tardio e os fins do sono

Fotografia de Tom Magllery (via)

Por Danilo Bittencourt

Sentamos confortavelmente diante da tela. Terminamos aquele trabalho, verificamos os e-mails, lemos algumas noticias, mandamos um "salve" nas redes sociais, visitamos o Bigórnia, damos um saque naquele meme, assistimos à um dos vencedores do Oscar 2015 - temos que estar por dentro - revemos mais um episódio de Game of Thrones, whatsapp, twitter etc. De repente, olhamos para aquele pequenino relógio no canto inferior direito da tela: 03:00 AM. Lembramos que temos compromisso, e logo pela manhã. A sociedade cobra, eu cobro, você cobra, não precisamos insistir.

Mais uma noite mal dormida, resultado de um turbilhão de responsabilidades, irresponsabilidades, entretenimentos e escolhas, algumas necessárias, outras nem tanto. Às vezes penso comigo mesmo: "porque isso sempre acontece?". São tantas as coisas à se fazer, tantas as possibilidades disponíveis, que, em algum momento sempre concluo, de maneira desleixada: "melhor seria se não precisasse dormir". E, nesses momentos, eu anseio com um universo 24/7, tal qual àquele das fábricas, das lojas de conveniência, das farmácias, da internet e do livro de Jonathan Crary.
Em sua inutilidade profunda e passividade intrínseca, com as perdas incalculáveis que causa ao tempo produtivo, à circulação e ao consumo, o sono sempre estará a contrapela das demandas de um universo 24/7. A imensa parte de nossas vidas que passamos dormindo, libertos de um atoleiro de carências simuladas, subsiste como uma das grandes afrontas humanas à voracidade do capitalismo contemporâneo. O sono é uma interrupção sem concessões no roubo de nosso tempo pelo capitalismo. A maioria das necessidades aparentemente irredutíveis da vida humana - fome, sede, desejo sexual e recentemente a necessidade de amizade - foi transformada em mercadoria ou investimento. (...) A verdade chocante, inconcebível, é que nenhum valor pode ser extraído do sono. (p. 20).
Em 24/7 - Capitalismo Tardio e os Fins do Sono, publicado no Brasil pela editora Cosac Naify, o professor de Arte norte-americano Jonathan Crary arrisca, em tom provocativo, uma compreensão da gradativa queda na média de sono. Com um texto de agradável fluência (ponto para a tradução de Joaquim Toledo Jr.), Crary, às vezes como estudioso sério que é, às vezes como profeta, nos avisa sobre um assustador avanço da instrumentalidade industrial-capitalista sobre o nosso sono. No turbilhão desta instrumentalização, que tudo transforma em possibilidade de lucro, o sono representa um "tempo jogado fora". E "tempo é dinheiro". Apesar do tom apocalíptico do texto, devo dizer que Crary é convincente, ao menos em boa parte de suas colocações. Suas investidas ganham força a partir, não só do bom manejo do texto, como também das citações certeiras, que incluem nomes do porte de Hanna Arendt e Gilles Deleuze, entre outros.


Arkwright's Cotton Mills by Night de Joseph Wright of Derby


O ensaísmo de Crary também encontra um dos seus trunfos na retomada do mundo moderno, em uma busca pelos primórdios do capitalismo voraz que critica. Diante de toda a euforia pós-modernista, às vezes não percebemos o quanto nossa era tem em comum com aquele mundo recém industrializado. A abordagem que Crary faz da pintura Arkwright's Cotton Mills by Night de Joseph Wright of Derby, que reproduzida logo acima, ilustra o estranho encontro, na Inglaterra, no anoitecer do século XVIII, entre o mundo industrial - planejado, controlado e recém iluminado - em contraste com o campo primitivo e sujeito às intempéries. É o fim de um dia de trabalho para o camponês e, ao mesmo tempo, a continuidade da atividade produtiva para aqueles já inclusos na lógica industrial.  
A estranheza da pintura vem em parte da inserção discreta, mas notadamente antipitoresca, de prédios de tijolos de 6 e 7 andares em uma paisagem rural de bosques selvagens. (...) Mais inquietante, no entanto, é a elaboração de uma cena noturna na qual a luz da lua cheia, iluminando um céu repleto de nuvens, coexiste com os pequenos pontos de luz das janelas dos moinhos de algodão, iluminadas por lâmpadas a gás. A iluminação artificial das fábricas anuncia a instauração racionalizada de uma relação abstrata entre tempo e trabalho, separada das temporalidades cíclicas dos movimentos da lua e do sol. A novidade dos moinhos de Arkwright não está no determinante mecânico, como o motor a vapor (os moinhos eram hidráulicos) ou as recém inventadas máquinas de tecer, mas na redefinição radical da relação entre tempo e trabalho: a ideia de operações produtivas ininterruptas, do trabalho lucrativo em funcionamento 24/7. (p. 70).
A crítica feroz de Crary ao capitalismo pode nos levar à uma visão um tanto pessimista - terreno ideal para a ingênua busca pelas utopias - e, ao mesmo tempo, pode ressaltar as vantagens deste mundo 24/7, que vão desde os serviços mais urgentes, como hospitais, bombeiros e demais auxílios vinte e quatro horas, até o mais puro conforto e comodidade da diversão noturna, além de toda a riqueza gerada pelo significativo aumento da produtividade, como dizem muitos economistas. Ao mesmo tempo, o sedutor discurso do norte-americano aponta para prejuízos bastante reais: o aumento da pressão para ser "o melhor", para se dedicar ao trabalho, para ter a família perfeita, para empreender, enfim, para corresponder à todo o tipo de expectativa que esta sociedade de capitalismo tardio nos cobra. Pois, bem, será que é daí que vem tantos diagnósticos de depressão? Decerto, o que temos aqui é uma leitura imperdível. Útil para refletirmos sobre o quanto amamos e odiamos o mundo 24/7. Resta saber se, quando o sono acabar, estaremos prontos ou não para deixa-lo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário