27 de fevereiro de 2015

Centaurus: da invenção de fundo de quintal até um malfadado fabricante de carros



Várias são as histórias de empresas e pessoas com um punhado de ideias prontas para serem colocadas em prática, mas que não conseguiram ver futuro pela falta de algum financiamento, recurso essencial para que produtos como automóveis virem realidade e se tornem comercializáveis. A carência de financiamentos pode existir por diversos motivos, inclusive por jogos de interesses e preferências. Incentivos ao surgimento de fabricantes de carros genuinamente brasileiros jamais existiram e pequenas empresas como a Centaurus sempre foram esmagadas perante o favorecimento estatal de corporações multinacionais.

O caso da Centaurus é um entre dúzias de muitos outros. Tendo se passado durante o nascimento da indústria automobilística brasileira, é figurante de um mercado que estava perceptivelmente disposto a esbanjar um enorme potencial criativo, mas que ao mesmo tempo se mostrava condenado a um pequeno grupo de grandes montadoras livradas até mesmo da concorrência externa.

De qualquer forma, desconsiderando quaisquer pretensões de produção em série, as origens do Centaurus ─ como às vezes é o caso de diversas marcas hoje consideradas lendárias ─ se remontam a experiências de fundo de quintal. Tão interessante quanto as experiências é conhecer as mais variadas histórias possíveis que são consequências dessa atividade, que por sua vez exige cuidado e dedicação tão elevados a ponto de em alguns casos revelar a quintessência da paixão por automóveis.



Theodor Darié



Theodor Darié com suas filhas(?) e exibindo a sua criação.


De origem romena com qualificação de engenheiro aeronáutico e patente de capitão-aviador, Theodor Darié (1909-?) migrara para o Brasil no início da década de 50, ocupando o cargo de chefe da Divisão de Estudos e Registros da FNM (Fábrica Nacional de Motores) e de professor-conferencista na Escola Técnica do Exército. Naturalmente provido de grande respaldo técnico, se aventurou a projetar e construir seu próprio veículo para uso estritamente pessoal, uma vez que sua dificuldade de locomoção o impossibilitava de andar por longas distâncias, principalmente por dentro das instalações da FNM.

Finalizado em 1954 e batizado de VM 400, a criação de Darié se tratava de um microcarro conversível de três rodas ─ uma à frente e duas atrás ─ com carroceria feita em chapas de aço soldadas e chassi tubular. Podia ser coberto por uma capota de lona e comportava até seis ocupantes (se levarmos em conta três crianças no banco de trás, como mostra a foto acima) divididos entre os dois bancos inteiriços. A maioria dos componentes do carrinho era de origem nacional já naquela época; as exceções eram o carburador, os rolamentos e parte do sistema elétrico. É bem provável que Darié, na condição de um cargo de chefia em uma fábrica de caminhões, tenha usufruído de algum acesso a recursos técnicos.

Ele mesmo projetou e construiu o motor do veículo: um monocilíndrico de dois tempos com 400 cm³ de deslocamento, cárter de alumínio, refrigeração a ar e 16 cavalos de potência. Também era montado diretamente na única roda dianteira, consequentemente de função motriz e direcional, além de que a transmissão era feita através de um jogo de cinco correias em 'V'. Ao invés de volante, um manche posicionado no centro completava o sistema de direção. 

Dentre outras características mecânicas: caixa de câmbio com apenas duas marchas à frente e sem ré; embreagem centrífuga; suspensão traseira independente por anéis de borracha; e freios ─ provavelmente de lonas ─ atuantes somente nas rodas traseiras. Por fim, 3,6 metros de comprimento, 650 kg de peso e 65 km/h de velocidade máxima.


Centaurus: o mesmo VM 400, mas com diversos aperfeiçoamentos.


A segunda criação de Darié viria a ser o VM 800, mas infelizmente só ficou no papel. Uma pena, pois este já teria quatro rodas, tração traseira por dois eixos cardã, motor de dois tempos refrigerado a ar com 800 cm³ e 32 cavalos de potência, suspensão independente na frente e inéditos freios a disco nas quatro rodas. Por outro lado, em 1956, o VM 400 foi submetido a uma série de modificações mecânicas que revelavam seu senso de pragmatismo e refinamento técnico aliados à simplicidade. Seria rebatizado de Centaurus.

Perdia-se em estética com a remoção da frente em formato triangular e o conjunto propulsor agora visível. Ganhava-se na mecânica com a substituição do manche direcional por um tradicional volante à esquerda, uma surpreendente caixa de câmbio de seis marchas à frente e duas a ré e inéditos freios a disco nas rodas traseiras. A capacidade de carga aumentara para 400 kg e com isso o peso final para 900 kg.


Apesar da quase nenhuma preocupação com o visual, simplicidade e sofisticação técnica eram o foco de Darié.


Como traços característicos dos projetos de Darié, a inovação e a simplicidade eram reforçadas pela tese de que "a primeira característica do carro nacional necessária a marcar efetivamente o início da motorização maciça no Brasil deverá ser um preço muito baixo, que corresponda somente a 5 ou 6 meses de salário médio do operário qualificado", como o próprio defendera, mostrando certa inspiração em Henry Ford.

Os refinamentos técnicos do Centaurus certamente causariam inveja ao Reliant Robin britânico, com o mesmo número e disposição de rodas, mas que somente seria lançado anos depois e conquistaria seu lugar na história do automóvel como um dos veículos de fibra-de-vidro mais vendidos do mundo. Nota-se que as soluções de Darié não eram tão típicas assim de parecerem de um "fundo de quintal"....



A Automóveis e Motores Centaurus S.A.



O Centaurus Super 1400, apresentado em público em 1961.


A transformação do VM 400 em Centaurus havia sido realizada nas oficinas da Induco, fabricantes dos elevadores Shepard, aonde Darié recebeu auxílio e ainda despertou o interesse dos proprietários, surpreendendo-os por conta de suas iniciativas e alta capacitação técnica. Também foram construídos protótipos de dois motores bicilíndricos de dois tempos e refrigerados a ar, sendo denominados de Centaurus-Major e Super-Centaurus, respectivamente com 25 e 37 cavalos de potência.

Mais à frente, em 1958, os proprietários da Induco, sempre com a colaboração de Darié, fundaram a Automóveis e Motores Centaurus S.A. em Campinas (SP), cujas instalções ficavam na Rua 1° de Março, 635, próxima à ladeira que dá acesso à Torre do Castelo, um dos principais monumentos da cidade. O primeiro produto da nova empresa era um esquisito e pequeno conversível de dois lugares, batizado como Centaurus Super 1400, que foi apresentado no II Salão do Automóvel, realizado entre os dias 25 de novembro e 10 de dezembro de 1961 no Pavilhão de Exposições do Ibirapuera.

O modelo certamente chamou a atenção por ter um visual nada comum em relação a outros carros nacionais, fora o fato de representar um produto de um futuro candidato a fabricante inteiramente brasileiro. Lembrava vagamente o Amphicar, carro anfíbio alemão lançado mais ou menos naquela época.

O curioso e desproporcional parachoque dianteiro, com quatro batentes, podia até causar uma sensação de robustez, no entanto, seu tamanho exagerado provavelmente explica a ausência de uma grade dianteira. O capô possuía uma maçaneta e um friso central, como no Fusca, enquanto que nada menos que oito faróis e faroletes compunham o conjunto óptico na frente, dois dos quais eram direcionais, mas aparentemente fixos, e portanto, provavelmente ativados de acordo com a direção que a carro tomasse. O para-brisa panorâmico era feito em acrílico e na traseira ainda havia duas barbatanas.


O esquisito conjunto óptico na frente (à esquerda) e um dos dois motores bicilíndricos.


Apesar dos exageros estilísticos, a simplicidade viria na construção da carroceria, feita em compensado naval moldada ao seu formato e sem peças estampadas, justificando assim suas formas inusitadas. O projeto da carroceria foi concebido por um experiente construtor de barcos de madeira, que através do material escolhido, encontrou uma solução mais barata para produção em série, dispensando a necessidade de enormes prensas para estampar chapas metálicas. O chassi, no entanto, era tubular.

Em relação à parte mecânica, o Centaurus possuía dois motores bicilindrícos de dois tempos e refrigerados a ar ─ derivados dos que haviam sido construídos na Induco ─ totalizando quatro cilindros e 1.600 cm³ de deslocamento. A potência individual dos motores era estimada em 30 cavalos a 4.500 rpm, além disso, cada um deles poderia funcionar independentemente. Os motores eram acoplados às rodas traseiras através de um sistema de transmissão direto que dispensava o uso de embreagem e diferencial, além de que as três marchas e a ré eram acionadas através de botões elétricos no painel.

A suspensão era independente e utilizava componentes de borracha que agiam sob compressão e os freios eram a disco nas quatro rodas. Em relação às dimensões: 4,55 metros de comprimento; 1,45 metro de altura; e 2,50 metros de entreeixos. Peso total de 750 kg, capacidade máxima de carga de 350 kg e velocidade final estimada em 140 km/h.

Os 15 minutos de fama da Centaurus no Salão do Automóvel serviram ao menos como meio de promoção e visibilidade da recém-criada empresa, permitindo então que novos modelos e planos fossem anunciados e que se desse início a uma campanha de captação de poupança pública mediante venda de quotas de participação, um esquema similar ao que seria praticado futuramente pela Indústria de Automóveis Presidente (IBAP) e pela Gurgel.

É possível que o Super 1400 também tenha sido exposto no III Salão do Automóvel, realizado no fim de 1962, porém de qualquer forma é sabido que a empresa pouco depois desistiu do projeto e destruiu o único protótipo construído. Caiu irremediavelmente no completo esquecimento.



Ressurgimento das cinzas



Centaurus Milico: o útlimo subproduto das ideias de Darié na forma de um jipinho rústico.


A Centaurus reaparecera repentinamente em janeiro de 1963 através de uma propaganda de revista (conforme pode ser visualizada ao lado), anunciando o lançamento de um novo modelo para o primeiro semestre daquele ano. O carro em questão se tratava de uma picape de estilo moderno e equiparável ao de grandes montadoras européias, incluindo para-brisa e vidro traseiro panorâmicos, mas nada em comum com a simplicidade do modelo anterior.

O anúncio ainda incluia características técnicas como o novo motor de quatro cilindros refrigerado a ar e de quatro tempos, câmbio manual de três marchas e freios a tambor Bendix de acionamento hidráulico. Por fim, ainda havia o recado de chamada para os possíveis  acionistas (e provavelmente criticando também a falta de incentivos do governo): "Dê aos que trabalham para o engrandecimento do Brasil, o seu incentivo e o seu entusiasmo. Procure saber como colaborar com a Automóveis e Motores Centaurus S.A.". A picape, de qualquer forma, jamais virou realidade e o futuro do fabricante permaneceu, assim por dizer, nebuloso ─ pelo menos por algum tempo.

O último resquício de existência da Centaurus (àquela altura sem o envolvimento de Darié) foi exibido em público durante o IV Salão do Automóvel na forma de dois modelos utilitários: o Milico e o Agrário. De estilo mais simples e convencional, eles eram respectivamente um jipe e uma picape com chassi alongado para maior capacidade de carga. Carroceria feita em fibra-de-vidro, chassi do tipo escada, tração traseira, suspensão de molas laminadas, freios a tambor da Bendix com acionamento hidráulico e câmbio manual de três marchas compunham alguns dos detalhes técnicos.

O motor era o mesmo de quatro cilindros refrigerado a ar anunciado anteriormente, porém redimensionado para 1,8 litro de deslocamento, 54 cavalos de potência a 3.000 rpm e 13 kgfm de torque a 2.000 rpm. Segundo a própria Centaurus, os modelos foram testados nas proximidades da fábrica e em diversas estradas, totalizando cerca de 20.000 km percorridos.


Despertando a curiosidade durante o IV Salão do Automóvel.


A tão esperada produção em série teve início em março de 1965, mas por ser aparentemente irregular, poucas unidades foram produzidas. Paralelamente, a empresa continuou com a sua campanha de captação cotas até encerrar suas atividades em meados de 1968. Dados sobre a quantidade de veículos produzidos, do capital arrecadado e dos cotistas são completamente desconhecidos. Encerra-se então mais um capítulo da história do automóvel que durante muito tempo fadou-se à obscuridade.


Referências: 123, 4 
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6 comentários:

  1. A proposta do conjunto mecânico nos primeiros modelos me lembra até certo ponto os triciclos Tempo de fabricação alemã.

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    1. Não acho difícil ter sido inspirado ou baseado na mecânica do Tempo, porque criar um motor a partir do zero naquela época no Brasil era quase digno de um feito heroico.

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  2. Tenho título referente a compra de ações desssa companhia datado de 30/06/1960.

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  3. sempre foi assim e sempre será se não mudarmos, quando algum brasileiro tenta fabricar um carro nacional vem alguem e mata a ideia, tem montadoras de todo lado todas de fora do pais nenhuma nacional, vamos mudar isto atenção engenheiros vamos parar de usar carros europeus,japoneses,italianos,nós temos potencial para tal.

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  4. trabalhei nesta empresa induco no rio de janeiro posteriormente assumida pela kone elevadores e nao sabia que eles tentaram fabricar um carro nacional, bem pelo menos foram sagazes e tentaram o que hoje em dia ninguem pelo menos tenta!!!

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  5. Tenho título de 100 ações com data de 24 de abril de 1960.

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