29 de março de 2015

Herbie Hancock e seu Shelby Cobra: o primeiro sucesso de um jazzista



Em muitos momentos na história, trajetórias completamente distintas de estrelas, especialmente daquelas que chegam ao status merecido de ícones, vez ou outra se cruzam de maneiras tão peculiares que rendem no mínimo fatos muito interessantes. As duas estrelas em questão de fama e brilho imensuráveis que transcendem todas as barreiras do tempo, pertencem respectivamente no universo do jazz e do automóvel. A parte mais curiosa é que seus caminhos se cruzaram exatamente na mesma época em que ambas atingiram conquistas fundamentais para o legado que continuará a ser apreciado por inúmeras gerações que ainda estão por vir.

A primeira dessas estrelas é o pianista Herbie Hancock, que particularmente considero sem radicalismos o maior jazzista de todos os tempos, extremamente inovador à sua própria maneira e por ter sido capaz de se reinventar musicalmente diversas vezes como pouquíssimos músicos, sem medo de ser apedrejado pelos puristas. Considero também seu ápice artístico as fases conhecidas como Mwandishi (1971-1973) e a que o mesmo comandava a banda The Headhunters (1973-1977).


Herbie Hancock na fase Mwandishi.


Ao contrário da primeira fase mencionada, caracterizada por um som mais introspectivo e atmosférico, a segunda foi inaugurada por uma brusca ruptura: o álbum Head Hunters, lançado em 1973. Esse disco foi não só um divisor de águas na carreira de Hancock como também representou um passo fundamental a uma modalidade do jazz fusion que viria a ser conhecida como 'jazz-funk'. Ao incorporar elementos do rhythm & blues e ─ obviamente ─ do funk, essa nova linguagem jazzística era muito mais acessível e rapidamente se repercutiu entre um público muito maior.

Mas, voltando ao início dos anos 60 ─ época em que Hancock ainda era mais um ilustre desconhecido galgando oportunidades em Nova York ─, eis que havia a outra estrela em ascensão: o AC Ace, um esportivo britânico até então desconhecido fora de sua terra de origem, começava a ganhar outra vida nas mãos do então recém-aposentado piloto Carroll Shelby nas suas humildes instalações em Los Angeles. A receita? Adaptá-lo a algumas opções de motores V8 da Ford para concorrer com o Corvette, virando o que passaria a ser conhecido como AC Shelby Cobra. A Ford adorou a ideia e muniu Shelby de um generoso respaldo financeiro, técnico e publicitário até mesmo para as competições ─ assustando até mesmo a Ferrari! Resultado: o carro virou um dos maiores ícones da história do automóvel.


Carroll Shelby e dois Cobras no pátio da fábrica, em 1964.


Apesar de Hancock ter se tornado um nome de peso no jazz praticamente uma década após o sucesso meteórico do Shelby Cobra, o passado humilde tanto do músico quanto do carro se coincidiram de uma forma curiosa conforme a história a seguir.



Watermelon Man: a chave do sucesso



Herbie Hancock em 1961.


Oriundo da zona sul de Chicago, até então um lugar com uma atmosfera mais bucólica e distante do ritmo mais acelerado do centro da cidade, Hancock se mudou para a frenética Nova York como integrante do quinteto do já renomado trompetista Donald Byrd. A cosmopolita metrópole havia se tornado o principal centro mundial do jazz; um verdadeiro ponto de encontro internacional de todas as grandes estrelas do gênero musical. Ir ao Birdland, um dos clubes mais importantes de toda a história do jazz, era literalmente um itinerário obrigatório. Byrd, por sua vez, é merecidamente considerado por Hancock como um de seus maiores mentores e conselheiros no início de sua carreira.

A título de curiosidade, Byrd pioneirizou ao abraçar o funk e o rhythm & blues de uma forma até então jamais vista entre outros músicos de jazz no álbum Black Byrd ─ mais abrupta até mesmo do que no Head Hunters, lançado somente alguns meses depois. Apesar de ter sido totalmente rechaçado pelos puristas, o Black Byrd permaneceu por vários anos como o título mais vendido da Blue Note, um dos mais renomados selos de jazz. Consequentemente, Byrd continuou a desenvolver sua interpretação do 'jazz-funk' e logo no fim de 1973 lançou o Street Lady, seguido por Stepping Into Tomorrow e Places And Spaces, ambos de 1975.

Com Byrd, Hancock participou pela primeira vez da gravação de álbuns de estúdio: Royal Flush e Out Of This World, ambos lançados em 1961 e o último coliderado por Pepper Adams. Rapidamente, Hancock também passou a ser bastante requisitado como músico de estúdio por figuras como, por exemplo, Jackie McLean, Kenny Dorham e Lou Donaldson. Após se inscrever em diversos cursos na Manhattan School of Music ─ onde Byrd havia acabado de finalizar seu mestrado ─, no início de 1962, sua demanda começou a aumentar expressivamente e então surgiram as primeiras oportunidades para embarcar em turnês com algumas bandas.

Byrd também se ofereceu para dividir o seu apartamento no Bronx. Sempre bem vestido e aparecendo com um Jaguar, Hancock imaginava que Byrd vivia esbanjando, quando na verdade se deparou com um quarto-e-sala, além de que o carro pertencia à sua namorada. De qualquer forma, era bem melhor do que continuar no "muquifo" que Hancock dividia com o baixista do quinteto.


Donald Byrd e Herbie Hancock em 1964.


Enxergando uma progressiva maturidade musical em Hancock, Byrd então o disse que já era hora de gravar o seu primeiro álbum. Sábios conselhos lhe foram proferidos: ir até Alfred Lion, o cofundador da Blue Note e dizer que já havia sido convocado para uma entrevista; dizer que queria gravar um álbum por conta de um suporto recrutamento do exército; incluir um lado do disco com composições próprias e o outro com faixas já conhecidas (um questionável "parâmetro" para testar o potencial comercial do artista); e por fim, jamais em hipótese alguma abrir mão dos direitos autorais sobre as composições próprias (bom, muita gente ainda comete esse erro em diversas áreas até hoje).

No dia de assinar o contrato com a Blue Note, Hancock seguiu o conselho de Byrd e resistiu à pressão dos executivos da gravação em ceder seus direitos em troca da gravação do disco. O impasse chegou a um ponto em que Hancock ameaçou a deixar a reunião, sendo assim, sem mais argumentos, os executivos finalmente aceitaram em manter os direitos autorais.

Em maio de 1962, o Takin' Off, o primeiro álbum de Herbie Hancock, era finalmente era lançado. Alcançou o 84° lugar nas paradas do Billboard 100, que na época aglutinava todos os lançamentos da época independente do estilo musical e era uma marca muito boa para um estreante no jazz. 'Watermelon Man', a primeira e principal faixa do disco, era inspirada em uma figura que havia marcado a infância de Hancock: um vendedor que circulava pelas ruas de sua vizinhança transportando mercadorias em uma carruagem e que chamava a atenção das pessoas cantando "Watey-mee-low! Red, ripe watey-mee-low!" e que aparecia nas janelas das casas com pedaços de melancia para que as mesmas provassem. A melodia dos arranjos era complementada por um padrão rítmico que representava o rodar da carruagem sobre as ruas pavimentadas com paralelepípedos.


Takin' Off: o primeiro álbum de Herbie Hancock.


Para a felicidade de Hancock, em pouco tempo era possível ouvi-la nas rádios. O talento do jovem músico ficou ainda mais visível na cena do jazz e mais convites surgiram, entre os quais estava o posto na banda de Eric Dolphy para uma breve turnê no final daquele mesmo ano. As constantes quebras rítmicas e harmônicas de Dolphy exerceram uma grande influência em Hancock e muito dessa experiência foi aproveitada nos álbuns da fase Mwandishi.

Outro convite veio do percussionista cubano Mongo Santamaria que precisava de um pianista para tocar em um clube no Bronx em um fim de semana. Na terceira noite, com a pista de dança vazia e as pessoas completamente desinteressadas na próxima atração, Byrd apareceu para ver como tudo andava e de repente subiu ao palco para anunciar o show; ele logo iniciou uma longa conversa com Santamaria, que por sua vez confessou estar em busca de um elo que ligasse o jazz afro-cubano e a música afro-americana. Foi então que Byrd perdiu a Hancock que tocasse 'Watermelon Man'. Santamaria começou a se empolgar e logo correu para as suas congas, o baixista começou disparar suas primeiras notas, a banda inteira entrou no ritmo, e de repente, as pessoas começaram a invadir a pista de dança. A atmosfera do clube mudara completamente!


Mongo Santamaria: em busca do elo perdido entre o jazz afro-cubano e a música afro-americana.


Renascida com um ritmo latino pelas mãos de Santamaria, 'Watermelon Man' virou um enorme hit e alcançou o 10° lugar nas paradas do Cash Box e 11° no Billboard 100, o que significa que poderia ser ouvida a qualquer hora e em qualquer lugar. Pouco tempo depois, Hancock, através do advogado Paul Marshall, se registrou no BMI (Broadcast Music, Inc.) para rastrear todos os royalties merecidos. Como era possível antecipar "vendas futuras", Marshall ordenou um cheque no valor de 3.000 dólares (um pouco mais da metade do valor de um Cadillac DeVille zero-quilômetro), o maior que Hancock recebera até então. O período de aperto certamente já estava chegando ao fim.



Uma perua ou um carro esportivo?



Um Shelby AC Cobra de 1963.


Com toda aquele dinheiro em mãos, um dos planos de Hancock era adquirir uma perua, um veículo ideal para transportar todos os integrantes de sua futura banda e seus respectivos instrumentos. Byrd, surpreso, tentou convencê-lo a fazer uma escolha que era completamente o oposto: adquirir um carro esportivo! Era de se esperar de um figura que vez ou outra gostava de extravasar pelas ruas de Nova York ao volante do Jaguar de sua namorada, além de ser fissurado em carros esportivos. Byrd então o disse: "Olha, tem um carro aí chamado AC Cobra; é a versão de rua de um carro que tá batendo a Ferrari nas pistas". Indicou-lhe uma concessionária na Brodway, a Charles Kreisler Automotive, e concluiu: "vá lá dar uma olhada e veja se você ainda vai querer uma perua depois disso".

Mesmo sem enxergar utilidade para um carro esportivo na sua vida, Hancock foi à concessionária para ver o bólido. Os poucos vendedores que estavam atrás de uma enorme mesa fizeram questão de tratá-lo com indiferença; em uma época em que o racismo era deliberado sem quaisquer pudores, um jovem negro vestindo calça jeans e uma simples camiseta, cruzando os batentes de uma revendedora de luxo, era entendido como um parasita. O que um dos vendedores fez foi apenas apontar em direção a um dos carros sem ao menos olhá-lo ou responder a quaisquer perguntas.

Hancock, já furioso com aquela situação, foi em direção ao conversível branco de chassi CSX2006, o sexto Cobra produzido. Com interior preto estofado em couro e rodas raiadas, o carro estava equipado com o motor V8 de 260 pol³ (4.260 cm³) do Ford Fairlane, modificado para gerar 245 cavalos de potência bruta. Curiosamente este é o único Cobra que se tem notícia que saiu equipado de fábrica com carburação dupla.


O Cobra de Hancock foi a sexta unidade produzida.


Sem nunca ter comprado um carro na vida até então, sua inspeção se resumiu a dar um pequeno chute em um dos pneus e a uma olhada mais próxima nos faróis. Voltou ao vendedor e disse-lhe que queria comprar o carro. Surpreso, o vendedor retrucou: "você tem ideia de quanto esse carro custa?". E Hancock vociferou: "6 mil dólares e eu vou levá-lo! Amanhã lhe trarei o dinheiro!". O Cobra foi adquirido de propósito como "vingança" por conta do péssimo atendimento, algo que o próprio Hancock já confessou.

No dia seguinte, Hancock apareceu na concessionária em um traje mais elegante e com 2.500 dólares em espécie para dar entrada e parcelar o resto. O tratamento por parte dos vendedores foi obviamente completamente diferente e lá estava Byrd para testemunhar aquele acontecimento. Enquanto Hancock assinava toda a papelada, o saxofonista Jimmy Heath e mais dois músicos conhecidos passavam por perto e também passaram a fazer parte daquele episódio. O próprio Heath até foi de carona em uma voltinha com um dos mecânicos ao volante.

De qualquer forma, o que mais assustava Hancock era o torque monstruoso do Cobra, capaz de levar o carro até as 60 mph (96,5 km/h) partindo da imobilidade em menos de 5 segundos e a cobrir um quarto de milha em cerca de 14 segundos, enquanto que a velocidade final era próxima dos 250 km/h. Em outras palavras, eram números dificilmente superáveis na época. Quem o levou para casa foi Byrd, enquanto que o próprio dono só sairia pela primeira vez com a sua super máquina somente duas semanas depois. Uma garagem alugada perto da casa de Byrd foi providenciada para abrigar o carro nesse breve intervalo de tempo.




Até antes de dirigi-lo, Hancock visitava seu bólido diariamente para se acostumar com a embreagem rígida (uma forma que a fábrica encontrou para controlar o torque violento) e com a posição de dirigir. As primeiras voltas se resumiam a curtos trajetos, até que Hancock foi aprendendo a controlar o carro e a evitar qualquer desastre. Byrd, entretanto, acabou por bater o carro apenas seis semanas após a sua aquisição. Hancock apenas lhe disse: "não se preocupe; é apenas um carro".

O consertou custou-lhe uma fortuna ─ como era de se imaginar ─, mas o Cobra passou a ser um carro de uso diário e até o utilizou para dirigir para fazer shows em lugares como a Filadélfia, Boston, Chicago (sua cidade natal) e até mesmo duas vezes para a Califórnia. Mais de 70 mil milhas registradas até o cabo do velocímetro quebrar. Hancock deixou de utilizá-lo como seu principal meio de transporte em 1990 ao adquirir uma Ferrari zero-quilômetro. No entanto, ainda em posse do músico, Hancock é atualmente o proprietário original mais longevo de um Cobra, além de ter sido também o primeiro a adquirir o modelo na costa leste estadunidense. O valor do carro hoje chega a alguns poucos milhões.




Mais valioso do que o carro em si foram os conselhos do já veterano Byrd, cujo talento, tanto quanto compor, era reconhecer e incentivar outros talentos; não é por menos que ele tenha se tornado também pesquisador e professor universitário com qualificação de Ph.D.

Hancock resume seu Cobra a uma simples afirmação que também transcende seu valor material: "este carro representa primeiro sucesso de minha vida".


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