3 de março de 2015

Polikarpov PO-2: o Verdadeiro Triunfo da Mediocridade

Sabe a história de David e Golias? Pois não é a toa que esse mito se propagou com tamanha eficácia pela cultura ocidental: existem momentos históricos em que o mais fraco de fato vence primorosamente o mais forte. Isso aconteceu na Guerra dos 100 Anos, nas Guerras Napoleônicas, na Guerra do Vietnã e, claro, na Segunda Grande Guerra: o grande palco desta minha coluna.

Mas como isso é possível se o objetivo deste texto não é para falar de táticas e estratégias, e sim de veículos? A verdade é que, de fato um pequeno avião que tinha tudo para dar errado acabou dando certo. Ora, reviravoltas estratégicas até ocorrem com bastante freqüência. Em questões técnicas contudo, uma máquina ser tão inferior que passa subjugar máquinas enormemente superiores, apenas por sua mediocridade (na melhor das hipóteses!) é um fenômeno um tanto mais raro. E neste post falarei do provável exemplo mais emblemático do período da Segunda Grande Guerra.



Como falei no post anterior (e provavelmente voltarei a falar no futuro), a Alemanha nazista, mesmo com os empecilhos do Tratado de Versalhes, conseguiu reunir em pouco tempo forças de combate equipadas com a mais fina flor da engenharia da época. Dentre os avanços de sua tecnologia aeronáutica, destacamos os primeiros aviões a jato, primeiros mísseis balísticos de longo alcance e, talvez, os melhores bombardeiros de mergulho.

Foi um investimento aparentemente bem pensado: aliadas a estratégias ofensivas brilhantes, este maquinário de primeira linha arrasou com os aliados, que assistiam estupefatos a máquina assassina fascista tomar quase toda a Europa. Aviões como os BF-109, HE-111 e JU-88, mesmo derrotados na Batalha da Inglaterra, ainda inspiravam medo em seus inimigos por suas excelentes performances.

Um HE-111 sobre londres: tudo parecia perdido...

Em 1941 o pesadelo parecia de vez ter sido consumado: a Alemanha marchava sobre a Rússia, ganhando dezenas (em alguns casos centenas) de quilômetros em apenas um dia. O Exército Vermelho simplesmente se desmanchava perante o ataque surpresa da Operação Barbarossa (nome dado ao ataque surpresa lançado pela Alemanha contra a USSR) e suas perdas em homens e materiais eram enormes. Aparentemente, contra um inimigo decidido, bem treinado e principalmente bem equipado, todo esforço se mostrava inútil.

Agora vamos ver o outro lado da moeda.

A União Soviética havia sofrido enormes baixas no início da Operação Barbarossa mas, de um ponto de vista mais frio e calculista, suas reservas humanas ainda eram numerosas. O golpe pesado havia caído sobre seu equipamento de guerra, principalmente sobre a Força Aérea Soviética, que se viu reduzida a frangalhos, com a maior parte de seu equipamento destruído ainda em solo. O pouco que restou era inferior, se comparado com suas contra-partidas alemãs.

Caça soviético (me parece um I-16 de treino) destruído ainda no solo: os alemães chegaram chegando.

A situação era desesperadora e qualquer medida que retardasse o exército alemão era necessária. E a necessidade, amigos, é a mãe da invenção.

Inicialmente, o pequeno U-2 (seu primeiro nome) fora projetado por Nikolai Polikarpov para fins mais pacíficos. Seu primeiro vôo foi no final de junho de 1927 e sua função era de ser um avião de treino, tanto civil quanto militar. Sendo assim, fora projetado para dois tripulantes (um instrutor e o aluno) e para ser extremamente fácil de pilotar. Tão fácil que, além de ser um avião muito tolerante para com erros de iniciantes, era quase impossível de entrar em estol (quando um avião perde completamente a sustentação das asas). Para sair desta situação ruim, bastava o piloto soltar as mãos do manche que o U-2 voltava a voar normalmente.

Um U-2 (mais tarde, PO-2): um piloto podia passar um dia inteiro tentando e não conseguiria estolar.

Suas qualidades, porém, continuavam: sua mecânica simples o transformou em uma espécie de pau-pra-toda-obra. A extensão territorial gigantesca da USSR fazia necessário um meio de se transpor enormes áreas desabitadas e intocadas pela civilização para diversos fins: evacuação de feridos, resgate, entrega de correspondência e por aí vai. Foi também bastante usado na agricultura, onde surgiu o seu apelido: Kukuruznik ou "caroço de milho". O U-2 supria essas necessidades justamente por ser capaz de ser consertado com as ferramentas mais básicas. Seu motor refrigerado a ar era perfeito para vôos em temperaturas abaixo de zero, quando o a água para refrigeração do motor de todos os outros aviões havia congelado. Era praticamente um Fusca voador.

Com o início (desastroso) da Grande Guerra Patriótica (os russos chamam a Segunda Guerra assim. Se acostumem, pois sempre quando estiver escrevendo sob a ótica soviética, usarei esse termo), o pequeno U-2 foi chamado para as frentes de combate. Inicialmente, claro, seu papel era de apoio, resgatando feridos, lançando suprimentos e observando posições inimigas. Apenas um louco se lançaria em combate operando aquela máquina. Seu pequenino motor  radial Shvetsov M-11 de 5 cilindros produzia apenas 99 HP (um Fusca, em comparação, produzia uns 36 HP, só que Fusca não voa) para uma velocidade máxima de apenas 150 kmp/h.  Sua autonomia era de 450 quilômetros e seu teto de 3.800 metros. Sua fuselagem de madeira não oferecia proteção nenhuma ao piloto, mesmo contra os menores dos estilhaços, e  suas asas cobertas com lona se despedaçavam com enorme facilidade. Esta não era uma performance que inspirasse qualquer confiança.

Diferente do Fusca, o PO-2 não era tão carismático, contudo sua mecânica era tão benevolente quanto.

O problema era a falta crônica de aviões da Força Aérea Soviética, que se viu obrigada a utilizar o pequeno e frágil, porém numeroso, U-2 para missões de ataque ao solo. O primeiro louco, digo, piloto a atacar posições inimigas foi Pyotr Bevz, que lançou com as mãos algumas bombas sobre posições de artilharia alemãs durante a Batalha de Odessa, em 1941. Pequenas modificações de finalidade militar já estavam sendo projetadas para o U-2, como suporte para bombas embaixo das asas, mas ficou evidente pelas perdas terríveis que o Kukuruznik devia ser utilizado de outra maneira.

Renomeado U-2VS (voyskovaya seriya ou "modelo militar"), o avião agora podia carregar até 350kg. de bombas além de duas metralhadoras  ShKAS 7.62mm (ou duas metralhadoras DA de mesmo calibre) montadas logo a frente da cabine. O avião, contudo, continuava lento e vulnerável. Para sua defesa foram criadas novas táticas, que foram surpreendentemente eficazes.

O painel de instrumentos de um PO-2: imagino que nos anos 20, 30 e 40 existiam bem menos indicadores.

O papel de bombardeiro noturno leve caiu como uma luva para o pequeno U-2, que podia pousar e decolar em quase qualquer lugar e cujo pouco potente motor quase não fazia barulho. Voando na escuridão, a poucos metros de altitude, os pilotos costumavam galgar altitude pouco antes de alcançar o alvo para atacá-lo planando, com o motor desligado, em completo silêncio. Após lançar suas bombas  (que não necessariamente precisavam acertar o alvo, pois o objetivo primário era manter os alemães acordados, em alerta e, conseqüentemente, cansados), voltavam para as linhas amigas de novo a poucos metros de altitude. Caso era interceptados por aviões inimigos, simplesmente voavam reto o mais devagar possível, já que sua velocidade máxima era inferior a velocidade de estol de todos os caças da Luftwaffe. Os potentes caças alemães simplesmente voavam rápido demais para abater o U-2. 

(há, inclusive, um caso interessante. Um piloto alemão certa vez encontrou um U-2 voando de dia. Tentou atacá-lo mergulhando por cima, mas isso se mostrou muito difícil, pois o U-2 voava baixo demais. Tentou então atacá-lo pelas 6 horas (por trás), mas seu avião era simplesmente rápido demais e ele passava direto em toda tentativa. Obstinado, o piloto alemão baixou os flaps e o trem de pouso de seu BF-109 a fim de frear seu avião. Deu certo e o U-2 foi abatido, porém o recuo de seus canhões 20mm. fez o BF-109 estolar e cair. O piloto alemão sobreviveu para contar a história, mas foi uma troca infeliz: foi equivalente a acabar com um Porsche 911 para destruir um Fusca.)

Antagonista: o BF-109 estolava por volta de 135 km/h. Esta era quase a velocidade máxima de um PO-2

A capacidade do pequeno avião em pousar em qualquer lugar vinha a calhar no final da missão, quando era quase impossível avistar com exatidão a pista de pouso e o U-2 podia errar a mira por até dezenas de metros sem grandes problemas.

Por estas características, o U-2 gozava de boa fama entre os soviéticos, quem viam nele um símbolo da criatividade russa e da resistência contra o fascismo. Por outro lado, o U-2 era temido e odiado pelos alemães, que o apelidaram de Nähmaschine ("máquina de costura"), pelo barulho "irritante" de seu motor. Sua eficácia em manter os soldados alemães cansados e estressados era tamanha que, aquele que abatesse um U-2, era imediatamente condecorado com a Cruz de Ferro.

Havia também todo um esquadrão composto por mulheres pilotos e mecânicas, carinhosamente apelidado de "Bruxas da noite" pelos alemães, tamanha era sua eficácia. Realizando diversos ataques numa mesma noite com o mesmo avião, este esquadrão foi inúmeras vezes condecorado pela bravura de suas pilotos. Ampliando ainda mais o efeito desta guerra psicológica, as pilotos notaram também que o simples fato de serem mulheres já abaixava o moral dos combalidos soldados nazistas.

Mulheres no manche, perigo constante! Para os alemães, claro.

No final das contas, o avião ganhou seu derradeiro nome (PO-2) em 1944, para homenagear seu criador (e também por causa de uma padronização do sistema de nomes de aviões na União Soviética). O PO-2 também recebeu um motor levemente mais potente (150 HP). O novo modelo voou até o final da Grande Guerra Patriótica, participando inclusive da tomada de Berlim. Como se não bastasse, foi utilizado também pelos comunistas na Guerra da Coréia, onde dois PO-2's atacaram uma base aérea norte-americana, destruindo um F-86A Sabre e danificando outros oito. O pequeno avião do qual ninguém esperava grandes feitos chegava na era dos aviões a jato em grande estilo: sua construção de madeira praticamente o deixava invisível aos radares, uma espécie de stealth primitivo e não projetado.

O PO-2 entrou para história como um dos aviões mais fáceis de pilotar e um dos mais difíceis de derrubar. Conta-se que, em um show aéreo em 1986 na Hungria, o piloto de um PO-2 teve um ataque cardíaco fulminante e morreu em pleno vôo. O avião simplesmente perdeu altitude aos poucos e pousou sozinho com pequenas avarias em um campo. Tais qualidades de pilotagem, manutenção simples e versatilidade (havia versões para os correios, de resgate, ambulância e até mesmo de luxo!) o mantiveram na linha de produção até 1959, totalizando mais de 40.000 unidades produzidas.


De fato a analogia com David e Golias cai como uma luva.

E toda semelhança com o Fusca é mera coincidência.

Alemães inspecionam um PO-2 abandonado: ele pousava em qualquer canto!

Dados:

  • Largura das asas: 11.40 m.
  • Comprimento: 8.17 m.
  • Altura: 3.10 m.
  • Área total das asas: 33.15 m2
  • Peso total: 890 kg
  • Capacidade de carga: 350kg
  • Velocidade máxima a 1.000 m. de altura: 150 km/h
  • Tempo para atingir 2.000 m. de altura: 13 min
  • Teto: 3800 m.
  • Autonomia: 450 km.
  • Motor: um Shvetsov M-11, Radial, de 5 cilindros, refrigerado a ar, produzindo 99 hp (versões posteriores: 150hp)

Referências:

1, 2, 3, 4, 5, e wikipédia (não me julguem!)

Vídeos:


Vídeo de época mostrando um PO-2 equipado com trem de pouso
com esquis para neve.


PO-2 nos dias de hoje: observe como ele decola fácil.

Documentário muito bom (em russo) sobre o PO-2.
Existia uma versão legendada em inglês deste vídeo,
e nele muito me baseei para escrever este texto. Infelizmente
não achei essa versão legendada de jeito nenhum.
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